Parte da discussão sobre as dívidas ocultas, no julgamento de Londres, envolveu a necessidade de se estabelecer a distinção entre as modalidades de financiamento de projecto e créditos com garantias soberanas.
Aqui, uma vez mais, a firma de advogados da Gotshal & Manges, em representação da VTB, o banco russo envolvido em parte dos empréstimos, teve de recorrer ao especialista Jonathan Berman, para dar a sua opinião profissional.
Na sua apresentação, Berman destaca que de entre outras actividades, teve a sua carreira profissional no sector da banca de investimento entre 1987 e 2005, sendo actualmente director executivo da Autonomi Capital, prestando serviços de consultoria nos sectores de energia, infra-estruturas e recursos minerais.
Na sua opinião, Berman defende que apesar das transacções da MAM e da Proíndicus terem algumas características de uma “estrutura híbrida”, elas estão claramente mais próximas de empréstimos soberanos do que na definição de financiamento de projecto.
Isto, segundo ele, se deve ao facto de apesar de cada um dos contractos incluir disposições impondo que os respectivos proventos devem ser aplicados no financiamento do projecto ou em adiantamentos para serviços prestados pelo fornecedor (neste caso a Privinvest), nenhum dos contractos contém cláusulas detalhadas sobre a implementação e sucesso dos projectos.
Explica que na modalidade de financiamento de projecto os contractos tendem a ser mais detalhados, dado que os credores dependem do bom desempenho e sucesso do projecto a financiar para a recuperação do seu capital e juros. Tal detalhe deve incluir questões como metas importantes, restrições orçamentais, assim como indicadores-chave de desempenho.
A discussão sobre a distinção entre as duas modalidades de empréstimos tornou-se relevante face à alegação de Moçambique de que os bancos credores não foram suficientemente abrangentes nas suas diligências para o apuramento da elegibilidade do país para a contracção dos empréstimos.
Os bancos defendem que tendo os empréstimos sido solicitados numa modalidade em que os mesmos eram suportados por garantias soberanas, o nível de rigor quanto à viabilidade dos projectos era menor do que se tivesse sido na modalidade de financiamento de projectos, onde as três empresas – EMATUM, MAM e Proíndicus – teriam sido tratadas como entidades privadas.
Entidades privadas devem assegurar o sucesso e bom desempenho dos seus projectos como garantia para a amortização de empréstimos. Empreendimentos com garantias soberanas serão pagos pelo Estado, independentemente do seu sucesso ou não, mesmo que se verifique uma mudança de governo.
As questões de due diligence estão igualmente relacionadas com o risco de potencial crime financeiro envolvido em transacções, onde a instituição credora deve assumir a obrigação de verificar se não existem factos lesivos quer da parte do cliente quer da parte do fornecedor.
Moçambique alega que certo rigor na verificação de factos teria levado os bancos a detectar elementos de crime financeiro que estavam por detrás dos empréstimos, nomeadamente os subornos que estavam a ser pagos a funcionários do Governo e outras personalidades moçambicanas, assim como aos membros das equipas de negociação dentro dos bancos.
Em resposta, Berman defende que embora o due diligence para transacções de financiamento de projecto tenham o seu foco sobre o risco de crédito, ele pode também levar à exposição de riscos de crime financeiro, e sublinha que quase por definição, o financiamento soberano “envolve um nível superficial de due diligence quanto aos detalhes das transacções subjacentes, tais como contractos de financiamento”.
Quanto ao significado de “linha vermelha”, em referência a potenciais sinais de más práticas que os bancos deveriam ter detectado, Berman defende que este termo não é usado para descrever provas da presença do risco de crime financeiro, mas que se refere a características, actividades ou comportamentos sobre os quais funcionários bancários possam tomar conhecimento por via da sua experiência, e que podem indicar provas do risco de crime financeiro, o qual dependendo das circunstâncias, em certos casos pode ser mais significativo que noutros.
Esta questão torna-se relevante quanto aos vários riscos de crime financeiro que Moçambique alega que estavam presentes nas transacções das dívidas ocultas, tais como a natureza dos contractos de fornecimento que impunham a obrigatoriedade de os financiamentos serem encaminhados directamente ao fornecedor, assim como o não questionamento da legitimidade das garantias assinadas pelo então ministro das finanças, Manuel Chang.
Berman explica que para além de não ser competência dos bancos questionar a legitimidade do autor das garantias soberanas, não existe uma ligação automática entre o número de linhas de vermelhas (…) e o risco de crime financeiro de uma determinada transacção.
Alguns analistas de crédito, diz ele, “podem concluir, como uma questão de juízo profissional, que um elevado número de linhas vermelhas, exigindo um esforço significativo para a sua avaliação, tornariam uma transacção potencialmente inválida, enquanto outros poderão razoavelmente chegar a uma conclusão diferente”.
A este respeito Bernman vira-se para o papel de Jean Boustani, o principal negociador da Privinvest. Tendo encontrado em Moçambique um potencial cliente, foi Boustani quem estabeleceu a ligação entre os bancos Credit Suisse e o russo VTB, por um lado, e por outro, as autoridades moçambicanas, representadas por António Carlos do Rosário, funcionário superior do SISE e cumulativamente PCA da EMATUM, MAM e Proíndicus.
Berman considera que o envolvimento de Boustani na fase inicial dos contactos como intermediário não constituiria uma linha vermelha, dado que seria do seu interesse viabilizar o negócio com Moçambique, que na altura estava também à procura de um financiador. Mas seria problemático se ele continuasse a desempenhar esse papel nas fases subsequentes, particularmente durante o período de avaliação de riscos e de negociação dos termos e documentação do financiamento entre o principal cliente (neste caso Moçambique) e as entidades credoras.
Na verdade, o papel de Boustani foi mais do que de um vendedor à procura de um cliente e de um financiador para alavancar o seu negócio. Em certos momentos, ele aparece também como o principal cliente. Ainda assim, Berman entende que tal só seria inapropriado se Boustani “estivesse a coordenar e negociar o financiamento e os termos das garantias ou a dirigir as respostas do due diligence em nome da República (de Moçambique)”.