Parte significativa do processo judicial submetido por Moçambique junto do Tribunal Superior de Londres, procurando obter uma ordem para a anulação das dívidas ocultas assenta na questão do que é designado como “linhas vermelhas”, que os bancos credores deviam ter detectado para não prosseguirem com as transacções que totalizaram 2.2 biliões de dólares.
O caso está ainda na fase de análise pelo Juiz Robin Knowles dos argumentos das partes envolvidas, antes do veredicto final, que poderá ser proferido até meados deste ano.
Moçambique diz que as dívidas ocultas devem ser anuladas, porque a sua contratação violou um conjunto de normas jurídicas nacionais, para além de que as garantias soberanas que as suportam foram assinadas pelo então ministro das finanças, Manuel Chang, sem o respectivo mandato.
Isto aconteceu, argumenta Moçambique, porque havia um plano deliberado e premeditado para defraudar o Estado, envolvendo a Privinvest, os credores e elementos do Governo. Esta é a razão por que os bancos foram muito lenientes, ignorando factos que teriam claramente levantado suspeitas de fraude, e, consequentemente, a não aprovação dos empréstimos.
De acordo com Joe Smouha, da firma de advogados Peters & Peters, que representa Moçambique, uma dessas linhas vermelhas prende-se com a própria reputação do proprietário da Privinvest, Iskandar Safa.
Safa, que também era arguido no processo a título pessoal, morreu em Janeiro, mas é referido nos autos como tendo sido citado num relatório de diligências elaborado por uma empresa de controlo de risco e enviado ao Credit Suisse, no dia 19 de Março de 2013, como “um homem perigoso, que não olharia a meios para obter um contracto”.
Depois de dizer que Safa não mataria ninguém, mas que também “não se importaria”, o referido relatório acrescenta: “ele considera subornos como uma prática normal de fazer negócios”.
Smouha faz referência a um relatório da Transparência Internacional de 2013, em que Moçambique ocupa a posição 119 de um total de 176 países, e explica que com uma pontuação de 30 de 100 pontos, o país era considerado impossível de com ele fazer negócios sem estar envolvido com uma empresa do partido Frelimo como testa de ferro.
Acrescenta que o sistema de concursos públicos moçambicano era já nessa altura particularmente uma área de elevado risco, e que qualquer Banco teria percebido que estava a lidar com um potencial caso de risco de fraude financeira.
“Portanto, a combinação dos riscos de corrupção no sistema moçambicano de concursos públicos e a reputação de Safa não era meramente um risco, mas claramente bandeiras vermelhas dado que este era um contracto que valia biliões (de dólares) sem nenhum processo de procurement, e os funcionários bancários sabiam disto”, diz Smouha, sublinhando que faz parte da conduta, neste tipo de negócios, que a ausência de um processo de concurso público represente invariavelmente um elevado risco de corrupção, mesmo que tal não seja legalmente exigido.
“A primeira questão a ser colocada por qualquer funcionário bancário seria se houve algum processo de concurso público. Se a resposta for não, então a próxima pergunta é como é que a Privinvest obteve este contracto”, disse.
PGR
Smouha aborda ainda a questão da opinião legal que deveria ter sido solicitada junto da Procuradoria-Geral da República (PGR), para aferir a conformidade das garantias soberanas. Ele faz notar que este processo foi deliberadamente omitido, e cita um email de Detelina Subeva, uma funcionária do Credit Suisse, dirigido a Jean Boustani, solicitando não só a opinião legal da PGR, mas também um documento de suporte do Banco de Moçambique.
Explica que em reposta, Boustani terá dito que o processo do Banco Central estava a ser tramitado pelo CEO da Proíndicus (presumivelmente em referência a António Carlos do Rosário), e que o parecer da PGR não seria aceite “porque desde o primeiro dia que eles pretendem contornar processos públicos e manter a privacidade”.
Para Smouha, este era outro sinal de que qualquer Banco agindo na boa-fé não podia ignorar. “Se um funcionário bancário razoável não estivesse satisfeito com o facto de que todos os procedimentos foram observados, muitas vezes solicitaria uma confirmação por escrito da PGR quanto à conformidade em relação a todos os requisitos constitucionais, orçamentais e legais, pelo que há um esforço concertado não só de evitar processos legais e de concurso público, mas de os esconder”.
Outro elemento que os advogados de Moçambique consideram que foi deliberadamente ignorado pelos bancos como sinal de alerta foi o incaracterístico envolvimento da Privinvest na elaboração dos projectos e na activa defesa destes junto dos credores, com destaque para o papel de Boustani.
Por isso, questiona Smouha, por que é que Boustani estava “a negociar os termos com os quais a República (de Moçambique) estava a concordar?”, e responde que peritos convergem quanto à questão de que a inserção da Privinvest nas negociações entre o Governo de Moçambique e os bancos constitui uma linha vermelha.
Acrescenta que uma interessada parte legítima, a desempenhar um papel de intermediário na fase inicial, não constituiria uma linha vermelha, mas se tornaria muito preocupante mais adiante no processo, quando fosse para negociar os termos detalhados dos contractos, notando que Boustani, em nome da Privinvest, teria proposto o projecto ao Credit Suisse, e negociou-o até ao ponto de produzir o esboço da garantia soberana do empréstimo da Proíndicus.
Smouha nota que mesmo quando Makram Abboud, do Conselho de Administração do Banco russo VTB e representante para a África e Médio Oriente, assumiu o processo de recapitalização do empréstimo da Proíndicus, “entrou imediatamente em contacto com o fornecedor Boustani, e não com o mutuário e dono da garantia”.
“O que um funcionário bancário razoável e honesto teria pretendido saber é por que é que um Estado que concorda em contrair um empréstimo de mais de 2 biliões iria negociá-lo através de um representante da entidade beneficiária do empréstimo”, questiona Smouha, sublinhando que é também estranha a ausência de um conselheiro jurídico para Moçambique, “quer ao nível interno do Governo quer para prestar assistência em matéria de Banca de Investimento, mesmo perante o facto de se estar em presença de complexas transacções a serem conduzidas ao abrigo da legislação inglesa”.
As três empresas
Smouha defende também que se estivessem a agir de boa-fé, os bancos teriam questionado cláusulas de todos os três contractos de fornecimento (EMATUM, MAM e Proíndicus) que impunham que todo o dinheiro fosse canalizado incondicionalmente do fornecedor, sem qualquer tipo de salvaguarda no que diz respeito aos prazos de entrega dos bens. O convencional, segundo Smouha, seria que o contracto obrigasse o fornecedor a cumprir com algumas obrigações iniciais antes que qualquer pagamento fosse feito, ou, pelo menos, que fosse feito um pagamento à cabeça de 50 por cento ou menos, ficando o remanescente condicionado à entrega de parte do equipamento.
“Todo o montante do contracto pago à cabeça. Este é um contracto de fornecimento de vários anos, ainda que o cliente não receba nada à cabeça, mas paga todo o valor do contracto”, observa.
Outras linhas vermelhas têm a ver com o facto de os bancos nunca terem procurado saber como é que as empresas iriam gerar receitas para a amortização dos empréstimos.
Por exemplo, diz Smouha, “o plano de negócios da EMATUM mostrava que a empresa teria um lucro de 45 milhões de dólares no primeiro ano. Isto era, obviamente, comercialmente absurdo para uma nova empresa que nem sequer tinha um contracto de pesca, e para quem a entrega das embarcações só seria muitos meses depois”.
Smouha conclui: “Um plano de negócios fraco não é apenas um risco de crédito, mas no contexto da corrupção nos sistemas de procurement em Moçambique, é uma linha vermelha para risco financeiro”.