Há casos que nunca chegam a existir no terreno, mas ganham vida plena nos gabinetes, nas redes de activismo internacional e nas redacções europeias. A acusação de que as Forças Armadas moçambicanas teriam detido e maltratado civis em contentores na zona do projecto Mozambique LNG é um desses casos: nasceu sem provas, cresceu sem verificação e, mesmo depois de ter sido desmentida pelo Governo em 2024, ressurgiu agora como queixa criminal apresentada em Paris por uma ONG alemã.
Não há testemunhos validados, não há investigações independentes, não há qualquer elemento factual que sustente a acusação. Tanto o Estado moçambicano como a TotalEnergies negaram categoricamente ter cometido abusos. Mas a ausência de provas nunca foi um obstáculo quando a narrativa serve um propósito político maior. A reabertura da polémica surge exactamente na semana em que a TotalEnergies confirma o fim da força maior e anuncia a retoma do maior projecto energético da África Austral, um timing demasiado cirúrgico para ser coincidência.
A ofensiva comunicacional que se seguiu (impulsionada por redes anti-extractivistas europeias que nunca pisaram Cabo Delgado) transformou uma alegação antiga, já refutada, num facto político importado para Moçambique através de títulos alarmistas e pressões diplomáticas. E enquanto o país se vê obrigado a responder a uma acusação que não cometeu, o debate internacional desloca-se do centro da questão para o campo da narrativa.
Para que o leitor compreenda a arquitectura desta crise – o que foi dito, quando, por quem e com que intenções – reconstruímos, passo a passo, a sequência dos acontecimentos que levaram uma história falsa de 2021 a renascer em 2025 com força suficiente para colocar Moçambique na defensiva perante tribunais e governos estrangeiros.
A seguir, a linha cronológica que explica o que realmente aconteceu.
Março–Abril 2021
Ataques de grande escala em Palma. Milhares de civis fogem. As Forças Armadas operam sob condições extremas na zona do projecto Mozambique LNG, em Afungi.
Julho–Setembro 2021
Segundo a narrativa que agora regressa, civis teriam sido detidos em contentores pelo Exército moçambicano.
Não existe prova independente. Não houve verificação no terreno por parte de organismos internacionais.
2020–2021
TotalEnergies e Governo assinam um memorando que cria a Joint Task Force, unidade de protecção dedicada ao projecto Mozambique LNG.
Abril 2021
TotalEnergies declara força maior e suspende operações devido à insegurança.
2022–2023
Inquéritos internos e recolha de elementos sobre incidentes de Cabo Delgado. Há cooperação das operadoras com as autoridades moçambicanas.
Setembro 2024
O jornal POLITICO publica o artigo que lança a alegação do “massacre dos contentores”.
O Ministro da Defesa, Cristóvão Chume, reage prontamente: nega a acusação, identifica erros factuais e anuncia abertura de investigação nacional.
A narrativa perde força.
Março 2025
TotalEnergies comunica que cooperará com a investigação da Procuradoria-Geral da República sobre os acontecimentos de 2021.
7 de Novembro de 2025
A TotalEnergies levanta oficialmente a força maior, comunicando por carta ao Governo moçambicano.
O movimento anuncia a retoma do megaprojecto LNG.
17 de Novembro de 2025
A ONG alemã ECCHR apresenta em Paris uma queixa criminal contra a TotalEnergies por “cumplicidade em crimes de guerra”, baseada quase na totalidade no artigo do POLITICO de 2024. Não apresenta trabalho de campo. Não fornece provas novas e não consulta autoridades moçambicanas.
18 de Novembro de 2025
O Conselho de Ministros aprova um decreto que reabre formalmente espaço para o regresso da TotalEnergies à actividade no terreno, após quatro anos de suspensão.
20–21 de Novembro de 2025
A imprensa europeia e plataformas activistas amplificam a acusação, apresentando-a como facto novo. Vários meios omitem o desmentido oficial feito por Moçambique em Setembro de 2024.
Conferência de imprensa do Governo (20/11)
O porta-voz do Conselho de Ministros, Inocêncio Impissa, reage afirmando que:
• a informação “é nova”;
• o Governo necessita de “dados muito concretos”;
• Moçambique irá “monitorizar”.
A resposta (feita sem acesso ao histórico completo) é interpretada como hesitação, apesar de a acusação já ter sido formalmente rejeitada no ano anterior.
Situação em 21 de Novembro de 2025
A narrativa reciclada encontra grande difusão internacional;
Moçambique enfrenta pressão reputacional e risco de erosão da sua posição negocial;
A TotalEnergies reafirma cooperação com investigações;
A PGR mantém inquérito aberto;
O Estado moçambicano ainda não produziu resposta política consolidada sobre o ressurgimento da acusação.
Em suma: Até 21 de Novembro de 2025, o que existe é uma sequência inequívoca:
uma alegação refutada em 2024,
ressuscitada por actores europeus logo após o retorno da TotalEnergies,
amplificada sem verificação,e comentada pelo Governo moçambicano como se fosse inédita, deixando uma brecha narrativa num momento de alta sensibilidade estratégica para o país.
