Neste seu último documentário, o realizador Sol de Carvalho atreveu-se a mexer e expor um tabu que tem sido pouco explorado e explicado pela antropologia moçambicana.
Com imagem, som e, em particular, tradução de muito boa qualidade, o documentário transporta-nos para uma realidade que persiste até aos dias de hoje.
O tema gira em torno do ritual a que as mulheres são submetidas por parte da família que a lobolou. Resumidamente, a tradição manda que ela fique com o irmão mais velho do defunto, ou do que o segue, o qual dá início às suas novas responsabilidades copulando a viúva.
Mas os tempos evoluem e o que se passava na sociedade tipicamente rural e campesina, fechada em volta da família, protegendo-se para garantir a sua sobrevivência e continuidade, tem vindo a sofrer os efeitos de contradições, por razões de ordem social, educacional ou económica.
À partida, a qualidade e valor do “Kutchinga” reside no facto de o realizador e sua equipe terem conseguido expor no ecrã histórias reais, vividas pelas e pelos protagonistas desta tradição que culmina no ritual que dá nome ao filme. Mais importante ainda, conseguiram, sem qualquer sinal de intrusão, a espontaneidade dos actores e actrizes na exposição de como cada um passou, enfrentou e hoje vive depois de passar pelo ritual.
E ficamos a perceber como a tradição e o seu ritual têm evoluído após a independência do país. Se nuns casos as regras são seguidas e obedecidas, noutros foram introduzidas novas regras para se dizer que a tradição foi cumprida.
A mais gritante exposição e denúncia que “Kutchinga” nos traz é do testemunho do jovem que é contratado para copular a viúva em nome dos seus cunhados. E este jovem que gosta de boa vida e uns copos, não se exime de dizer que o seu “macaco” está sempre em prontidão, admitindo, porém, que parte do valor que recebe é gasto com tratamento medicinal para que o acto se consuma a contento da família contratante.
Mas ficamos também a perceber que as viúvas mais jovens, com maior formação académica, começam a rejeitar esta tradição. É que a viúva camponesa, sem meios de subsistência para se sustentar a si e aos seus filhos sem a protecção do Kutchinga, vem sendo reposta por uma mulher mais educada, com valores sociais, culturais e económicos que, tendo acesso a outros meios de subsistência, acredita e luta pela sua emancipação.
A moral deste documentário resume-se num cenário em que a chuva cai de um telhado. E a chuva surge como símbolo de mudança, do anúncio do fim de um mau período, ou mesmo do anúncio de nova vida. O facto é que as tradições e rituais não se mudam de um dia para outro dia.
(Alves Gomes)