O vinho terá desempenhado algum papel de relevo nas relações entre o primeiro Chefe de Estado moçambicano, Samora Machel, e o seu homólogo tanzaniano dos tempos, Julius Nyerere, de acordo com a transcrição de uma conversa tida entre este último e o então Secretário de Estado americano, Henry Kissinger, que faleceu na semana passada, aos 100 anos de idade.
De acordo com a referida transcrição, na posse do SAVANA, Kissinger encontrava-se de visita à Tanzânia, tendo sido recebido por Nyerere às 19h05 do dia 25 de Abril de 1976, num encontro a sós, no palácio presidencial, em Dar-es-Salaam.
À chegada, Nyerere apresentou a sua mãe e outros familiares, antes de acompanhar Kissinger para o seu gabinete privado.
O encontro visava abordar uma série de questões nas relações entre a Tanzânia e os Estados Unidos, mas foi extensivo a outros assuntos ligados à libertação da África do Sul, Namíbia e Zimbabwe.
Segundo a transcrição, no fim do encontro, cerca das 20,00 horas, os dois dirigem-se a uma sala contígua, onde Nyerere faz a apresentação de alguns membros do seu governo que se encontravam sentados, e oferece vinho ao seu hóspede.
Kissinger declina a oferta, ao que Nyerere retorqui, “é abstémio!” Kissinger responde que sim, que quase nunca bebe.
“Eu era abstémio. Até à vitória de Moçambique. Nunca me tinha relacionado com Portugal”, disse Nyerere. “Nunca conheci o vinho português. Depois, Samora Machel descobriu pilhas e pilhas de vinho nas adegas. Mandou-o para mim. Então, é o que lhe vão servir”.
Kissinger insistiu na sua abstémia, mas Nyerere explicou que “desde que o Samora me o mandou, chamo-o Samora. Sempre digo: ‘tragam-me o Samora’”.
O episódio do vinho foi apenas um ponto de partida para Kissinger procurar saber um pouco mais sobre como a FRELIMO nasceu.
“Eu costumava ir às Nações Unidas como peticionário”, responde Nyerere. “Este país (Tanzania) era um território tutelado pelas Nações Unidas, sob administração britânica. Estive nas Nações Unidas duas vezes. Numa das viagens, encontrei-me com o Dr. (Eduardo) Mondlane. Ele tinha estado a leccionar nos Estados Unidos, mas então estava a trabalhar nas Nações Unidas. E falamos sobre a libertação. Eu disse-lhe, ‘porque é que não vem a Dar-es-Salaam, e em vez de trabalhar para as Nações Unidas, trabalhar para a libertação do seu país’?”
Nyerere continuou: “Então, ele veio em 1962. Havia muitas organizações. Mondlane ajudou a juntá-las na Frente de Libertação de Moçambique – FRELIMO. Era realmente uma coligação de pequenos partidos. Começaram com a agitação. É tudo o que nós sabíamos, da nossa própria experiência. Eles tentaram, mas não era suficiente. Depois começaram a lutar – um ano depois da criação da OUA”.
Kissinger ainda tentou insistir em saber mais sobre Samora Machel, sobretudo como se tornou líder do movimento de libertação e depois Presidente de Moçambique.
Nyerere: “Machel era um dos combatentes. Quando se juntaram, Machel estava presente. Era um enfermeiro. Abandonou (Moçambique) e veio para aqui e foi recrutado e fez parte do exército (guerrilha) e tornou-se líder do braço armado. Quando Mondlane foi assassinado”.
Kissinger: “Oh, Mondlane foi assassinado”?
Nyerere: “Foi assassinado aqui. O mesmo aconteceu com (Amílcar) Cabral.
Kissinger: “Tem alguma ideia sobre quem o assassinou”?
Nyerere: “Foi planeado pelos portugueses, com infiltrados. Quando (Mondlane) foi assassinado, eles reuniram-se para escolher um novo líder. Estavam divididos, tal como os políticos que agora estão a lutar na Rodésia. Mas no congresso, os guerrilheiros escolheram o Machel”.
Kissinger: “O Senador Percy, com quem (V. Excia) se encontrou, e que se encontrou com Machel, ficou muito bem impressionado”.
A conversa prossegue com outros temas, incluindo o interesse de Kissinger de se encontrar, em Lusaka, com Joshua Nkomo, líder da ZAPU, um dos movimentos que lutavam pela independência do Zimbabwe.
A transcrição revela um Nyerere altamente estratégico e visionário na sua análise do mundo e sobretudo em relação à situação de então na África Austral.
A dado momento da conversa, quando Kissinger pergunta a Nyerere que tipo de ajuda ele precisaria para resolver os problemas da África Austral, nomeadamente o fim do regime minoritário branco na Rodésia (hoje Zimbabwe), a independência da Namíbia e o fim do apartheid na África do Sul, o presidente tanzaniano responde: “Na África Austral (…) as coisas estão a mudar. O que era necessário em 1975 poderá não ser necessário agora. Queremos pressão sobre o regime na Rodésia; queremos pressão sobre (John) Vorster quanto à Namíbia, e em última análise queremos mudanças na África do Sul. Não podemos continuar a viver com a África do Sul como está”.
E depois prossegue: “Quanto ao que pode fazer, muitas vezes as coisas que pedimos são extravagantes para vocês dentro dos limites do antigo sistema. Podem não nos dar armas, mas o que é que nos podem dar? Espero que me responda a essa pergunta, não dentro dos limites do seu poder, mas do vosso sistema”. Ao que Kissinger responde: “Estou aqui para aprender. Acreditamos que sem governo de maioria, não poderá haver paz e desenvolvimento independente em África. Outros países poderão certamente participar. Líderes como você sabem como usar as grandes potências para dar resposta às vossas necessidades. Mas em casos como Angola, onde exércitos estrangeiros aparecem, é um problema para nós. O nosso objectivo deve ser de evitar o surgimento de situações como essas.