Embora os Bancos envolvidos nos empréstimos das dívidas ocultas tivessem a obrigação de verificar dados sobre os seus clientes ou fornecedores destes, não seria estranho que no interesse de ampliar a sua carteira de clientes ignorassem a necessidade de tal procedimento e assumissem riscos.
A opinião é de Jonathan Berman, um especialista na área financeira, solicitado a intervir pela firma de advogados Weil, Gotshal & Manges, que defende o VTB Capital, para analisar a alegação feita por Moçambique, no julgamento que decorre em Londres, de que os Bancos se furtaram deliberadamente de exercer a sua obrigação de verificação de dados (due diligence) por alguns dos seus funcionários estarem envolvidos num esquema fraudulento entre a Privinvest e alguns funcionários do Estado moçambicano.
Berman diz que “qualquer bancário razoável” teria tratado os empréstimos como de “alto risco” do ponto de vista de risco de crime financeiro, e nessa perspectiva levar a cabo uma verificação apurada de dados (Enhanced Due Diligence), mas que também não seria irrazoável um Banco estar preparado a operar em áreas de alto risco.
Nota, contudo, que na altura da contratação das dívidas, Moçambique não era visto como um país de alto risco de corrupção, em comparação com outros países africanos.
“Não acredito que em 2013/2014, o sistema de procurement público moçambicano fosse em particular, e notoriamente conhecido pelas suas actividades ligadas à corrupção”, diz Berman, acrescentando que, para além disso, o tamanho das transacções, num total de 2,2 biliões de dólares, não era tão significativo em comparação com de outros países, onde se justificaria a avaliação de um potencial risco de crime financeiro.
Sublinha que a identidade das partes envolvidas numa transacção é o elemento mais importante para o Banco, quando este procura avaliar o risco de corrupção, e que muitas vezes a natureza e profundidade das investigações a realizar dependeria do tipo de informação prévia na posse do Banco sobre as partes envolvidas.
Papel do FMI
Uma das questões centrais durante o julgamento de Londres, que decorreu de Outubro a Dezembro do ano passado, está relacionada com o papel do Fundo Monetário Internacional (FMI) em confirmar ou não a elegibilidade de Moçambique para a contracção de empréstimos não concessionais.
Moçambique estava no meio de um programa de assistência técnica sob supervisão do FMI, o qual impunha limitações quanto à capacidade do país de contrair créditos comerciais sem uma aprovação prévia daquela instituição.
Como parte das suas diligências, nenhum dos Bancos parece ter intercedido junto do FMI para se certificar de que podiam conceder empréstimos comerciais a Moçambique.
Berman diz que embora tal fosse expectável, o VTB abordou a questão com as autoridades moçambicanas, tendo obtido garantias verbais de salvaguarda, que na sua opinião, mesmo não tendo sido reduzidas a escrito, têm o mesmo valor jurídico. Acrescenta que não concorda que as diligências quanto à conformidade com o FMI tivessem de incluir “tipicamente a solicitação de que o soberano (Moçambique) apresentasse uma aprovação escrita do FMI ou provas escritas de que o FMI foi informado e concordou com as transacções”.
De qualquer forma, diz, “a questão da divulgação de informação e aprovação do FMI (se necessária) ficaria normalmente na responsabilidade do Governo”, a menos que o Banco tivesse na sua posse provas de “ocultação activa” junto do FMI, ou no caso de um país que estivesse sob regime de vigilância ou com sinais de endividamento excessivo, ou ainda se a divulgação junto do FMI ou aprovação por parte deste organismo fosse uma condição precedente à transacção. Essa divulgação, considera Berman, deveria ocorrer tipicamente durante as reuniões de avaliação com o FMI, e depois da ocorrência.
Ausência da PGR
Quanto à ausência de uma opinião legal da Procuradoria-Geral da República (PGR), Berman diz que não considera tal facto relevante como elemento indiciador de um crime financeiro, a menos que o Banco tivesse provas de que a PGR estivesse a ser “positivamente excluída do processo sem qualquer razão válida”.
Para fortalecer a sua posição no processo de Londres, os advogados da firma Peters & Peters, que representa Moçambique, tiveram de recorrer ao Índice da Transparência Internacional sobre Percepções de Corrupção de 2012, que colocava Moçambique no lugar 123 de entre 174 países. A ideia era de mostrar que se o VTB tivesse se preocupado em efectuar as devidas diligências, teria se informado de que Moçambique era já considerado um país com um elevado índice de percepção de corrupção ao nível internacional, o que teria levado o Banco a agir com mais prudência.
Contudo, Berman diz que esse relatório não altera a sua opinião, “nomeadamente, de que Moçambique não era visto como representando um invulgarmente elevado risco de corrupção em comparação com o seu grupo e pares, incluindo alguns países africanos emergentes e mais ricos, e de facto tinha uma melhor avaliação do que alguns deles”.
Foi sugerido pelos advogados de Moçambique que as mesmas diligências deveriam ter sido feitas em relação a Iskandar Safa, proprietário da Privinvest, devido à sua alegada reputação de oferecer subornos a servidores públicos de países que fazem negócios com a sua empresa.
Mas Berman diz que essas alegações são um exagero, muito embora considere que se no processo de diligências tal fosse descoberto, seria motivo de grande preocupação.
Papel do Parlamento
Quanto à ausência de uma autorização parlamentar para se ultrapassar os limites de endividamento impostos na lei orçamental, Berman diz que tal não deve ser entendido como o reflexo de uma preocupação sobre um potencial risco de crime financeiro, assim como a incapacidade de obter a referida autorização seria o suficiente para considerar a existência de um “sinal vermelho”.
“Autorização parlamentar específica dos empréstimos/garantias não é um invariável requisito em todos os países, e se não o é, não teria nenhum propósito verificar a existência de tais aprovações”, observa Berman.
O facto de as garantias soberanas assinadas pelo então ministro das finanças, Manuel Chang, não terem sido previamente autorizadas pelo parlamento foi um dos fundamentos para que em Junho de 2019, o Conselho Constitucional declarasse inconstitucionais as dívidas ocultas, considerando que elas foram contraídas à margem da Assembleia da República.
No mesmo ano, a PGR, agindo em nome do Estado, accionou um processo cível junto da secção comercial do Tribunal de Londres, solicitando a anulação das dívidas e uma indemnização de 3,1 biliões de dólares devido a alegados danos económicos e reputacionais.
Depois de julgar o caso, o Juiz Robin Knowles encontra-se agora a analisar os factos, e os argumentos de todos os intervenientes processuais, antes de anunciar a sua decisão e referida sentença.