Uma imagem onde aparece o antigo Presidente Armando Guebuza, o seu então homólogo da França, François Hollande, e o falecido proprietário da Privinvest, Iskandar Safa, poderá ter sido deliberadamente coreografada para enviar um sinal aos bancos envolvidos nas dívidas ocultas sobre o prestígio deste último, facilitando desse modo que as instituições bancárias transferissem os valores para a empresa.
A icónica foto foi tirada durante uma visita do antigo Presidente à França, em 2013, durante a qual ele deslocou-se aos estaleiros da Privinvest em Normandia, no sul de França, na companhia de Hollande e Safa.
A sugestão sobre a possibilidade de tentativa de impressionar os bancos é feita por um antigo funcionário de um dos bancos envolvidos, Anthony George Biddulph, num depoimento que submeteu ao Tribunal de Londres, em nome da Gotshal & Manges, a firma de advogados que representa o VTB Capital, o banco russo que participou nos créditos que deram origem às dívidas ocultas.
Sem dizer taxativamente que a imagem pretendia impressionar os bancos, Biddulph faz uma abordagem sobre os questionamentos em torno das cláusulas dos contractos de financiamento que previam que os valores dos empréstimos fossem canalizados directamente à Privinvest, e não para contas bancárias tituladas pelo Estado moçambicano.
O questionamento é feito no sentido de que se os bancos tivessem feito o seu trabalho de diligências antes de autorizar os empréstimos, teriam detectado linhas vermelhas que teriam alertado sobre a possibilidade de existência de más práticas ou actos de corrupção envolvendo o fornecedor, neste caso a Privinvest, e personalidades moçambicanas, incluindo altos funcionários do Governo.
Na queixa que submeteu junto do Tribunal de Londres, exigindo a anulação das dívidas, Moçambique defende que deliberadamente os bancos não fizeram as devidas diligências porque estavam em conivência com a Privinvest e alguns governantes moçambicanos para defraudar o Estado.
Biddulph diz que não se recorda de ter sido abordado sobre preocupações relacionadas com corrupção ou subornos envolvendo a transacção de aumento do empréstimo da Proíndicus, na qual o VTB participou a convite do Credit Suisse.
“Sei que há sugestão de que o facto de que os fundos estavam a ser transferidos para o fornecedor e não para o cliente deveria ter sido motivo de preocupação”, diz Biddulph, acrescentando, contudo, que no seu entender, esse processo constituiria uma garantia estrutural para o credor.
A componente óptica também contava, diz Biddulph, lembrando-se de ter visto Safa a apertar a mão do então presidente francês, pouco antes da assinatura do contracto.
“A minha interpretação foi de que a Privinvest parecia um parceiro credível, e as pessoas (neste caso os bancos) sentir-se-iam mais confortáveis em financiar o estaleiro do que enviar o dinheiro para uma conta bancária em Maputo”, diz Biddulph, sublinhando que desta forma se dissipava qualquer incerteza quanto ao mau uso do dinheiro.
Outra questão preocupante que tem sido apresentada sobre os projectos das dívidas ocultas é o facto de os financiamentos terem sido feitos para entidades designadas por veículos especiais (ou SPVs) e não directamente para o Estado moçambicano. Mas Biddulph entende que seria errado considerar quer a Proíndicus quer MAM como SPVs, tendo em conta que elas eram start-ups que estavam a ser usadas como veículos para a obtenção de empréstimos com o objectivo de as tornar empresas, capazes de produzir as suas próprias receitas.
“De qualquer forma, a questão principal da estrutura das empresas é a garantia soberana”, diz Biddulph. “Se a garantia não existisse e não fosse válida, os contractos não teriam sido celebrados”.
Biddulph trabalhou para o VTB entre Abril de 2012 e Março de 2023, depois de ter passado durante cinco anos pelo Credit Suisse, onde conheceu três importantes figuras ligadas às dívidas ocultas, nomeadamente Andrew Pearse, Surjan Singh e Detelina Subeva. Os três confessaram, junto do tribunal, em Nova Iorque, terem recebido subornos da Privinvest para facilitar o processamento dos empréstimos.
O papel de Isaltina Lucas
No VTB, Biddulph era responsável pela componente de seguros associados a empréstimos concedidos pelo banco. Por isso é que diz que embora não tenha estado envolvido nas diligências relacionadas com os empréstimos moçambicanos, tinha interesse sobre as opiniões legais produzidas a seu respeito, dado que fazia parte das suas atribuições assegurar que quaisquer garantias eram válidas do ponto de vista da sua execução.
“Como profissional, eu não permitiria que um banco avançasse com uma transacção sem uma opinião legal”, diz Biddulph. “Não me lembro de quaisquer questões terem sido levantadas quanto à execução. De uma maneira geral, recordo-me que na altura pensei que a transacção suplementar da Proíndicus era uma boa oportunidade. Não era grande em termos do mercado de seguros ou das ambições da VTB, mas era boa do ponto de vista interno e da relação com Moçambique”.
Biddulph pretende, com esta observação, sublinhar que as garantias soberanas que suportaram a contracção das dívidas eram insuspeitas, contrariando assim o posicionamento de Moçambique de que as garantias eram inválidas por terem sido assinadas pelo então ministro das finanças, Manuel Chang, sem o devido mandato.
Biddulph testemunha igualmente ter estado envolvido na componente de seguros relacionados com o empréstimo da MAM, no valor 535 milhões de dólares, e confirma que tendo obtido as respectivas opiniões legais, o VTB estava seguro de que as referidas garantias estavam em conformidade com a legislação moçambicana, e que não havia problemas quanto à sua execução nos termos das leis deste país.
Refere-se ainda a uma missão de diligências que efectuou a Moçambique nos dias 1 e 2 de Dezembro de 2014, na companhia de Chingiz Mammadov, pelo VTB, e de Dominic Schulton e Andrew Pearse, este último já como funcionário da Palomar.
“A minha impressão geral de Maputo era de que estava completamente esfarrapada, mas não tinha muito com que comparar. Nunca tinha feito negócios em África, e nunca tinha estado numa cidade africana. Foi um choque cultural, mas o país era suposto estar à beira de coisas grandes e era possível ver grandes construções. No hotel onde estivemos hospedados, e também nos restaurantes onde frequentávamos, parecia haver um número razoável de profissionais ligados aos sectores de petróleo e gás”, diz Biddulph.
No Ministério das Finanças, a equipa reuniu-se com Isaltina Lucas, então Directora Nacional do Tesouro, que reconheceu a legitimidade e validade das garantias soberanas, e assegurou o seu pagamento pelo Ministério das Finanças, caso o VTB exigisse que elas fossem pagas, mas que o Governo não estaria interessado na sua publicitação devido ao que alegou serem razões ligadas à segurança do Estado. Terá sido igualmente nesse encontro que Isaltina Lucas confirmara que as dívidas tinham sido reportadas ao FMI, o que se veio a apurar mais tarde que não constituía a verdade.
Na Proíndicus, a equipa reuniu-se com António Carlos do Rosário, o pivot das dívidas ocultas e PCA da EMATUM, MAM e Proíndicus.
Esta reunião durou entre duas e três horas, e Biddulph se lembra de lhes ter sido apresentado um vídeo promocional. “No cômputo geral fiquei satisfeito que obtivemos toda a informação de que necessitávamos. A ideia da viagem era obter informação que de outro modo não seria possível obter (…) A Proíndicus demonstrou que estava no caminho certo, tal como era nossa expectativa. Era uma empresa verdadeira com património próprio, e pareceu ter perspectivas de conquistar clientes para gerar negócios e produzir receitas”.
Das suas impressões sobre Do Rosário, Biddulph diz que o deixou com a ideia de ser um parceiro credível. “Ele falava de forma clara e percebia o que pretendíamos e porquê. Não se mostrava reservado, era muito alegre e de um carácter afável – Lembro-me de partilharmos estórias sobre o nosso tempo como militares. Embora ele fosse claramente um indivíduo poderoso, não tive qualquer preocupação sobre possíveis subornos ou corrupção”.