Na batalha judicial que Moçambique trava em Londres para obter a anulação das dívidas ocultas totalizando 2,2 biliões de dólares, um dos seus argumentos de base está relacionado com a validade ou não das garantias soberanas sobre as quais os empréstimos foram concedidos.
Para Moçambique, não se trata apenas da questão de que o antigo ministro das finanças, Manuel Chang, agiu fora das suas competências para assinar as garantias, ou de que os bancos credores não foram suficientemente rigorosos na sua avaliação dos alegados riscos de fraude que se colocavam pela frente; torna-se também relevante, em torno do assunto, um complexo debate sobre qual é o regime jurídico que deve ser aplicado para se aferir a legalidade das referidas garantias.
Isto surge na sequência do argumento colocado pelos bancos, de que a questão da legitimidade de quem assinou as garantias é um assunto interno, que deve ser entre o Estado moçambicano e os seus agentes, mas que tal não deve afectar a validade dos contractos das garantias.
Este é um argumento que é rebatido pelo Professor Dário Moura Vicente, numa opinião legal que submeteu ao julgamento, em nome da Peters & Peters, a firma de advogados que defende os interesses de Moçambique.
Código Civil
Segundo o especialista, os limites de endividamento, tal como definidos pela Lei Orçamental, e dentro dos quais garantias soberanas devem ser emitidas, sobrepõe-se a toda e qualquer outra disposição sobre esta matéria.
Isto significa que, seja qual for o tipo de contracto que se tenha assinado com base em garantias soberanas e independentemente do regime jurídico aplicável para o mesmo contracto, não se pode pressupor que as disposições da respectiva legislação moçambicana sejam irrelevantes.
Ele cita o artigo 294 do Código Civil moçambicano, segundo o qual contractos que violem a lei devem ser considerados nulos.
Especificamente, o artigo 294 do Código Civil diz: “Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperioso são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”. Na interpretação de Vicente, isto significa que a menos que exista um outro dispositivo legal que isente a observância desta disposição, qualquer acto deve ser considerado nulo, o que se deve aplicar em relação às garantias das dívidas ocultas.
Vicente defende que o objectivo das regras orçamentais que impõem limites dentro dos quais garantias soberanas podem ser emitidas é o de prevenir a execução de garantias que excedam os referidos limites, “dados os seus efeitos potencialmente prejudiciais sobre as finanças públicas e o bem-estar de futuras gerações”.
Fundamenta, por isso, que se a punição dos agentes do Estado responsáveis pela violação desses limites fosse a única consequência, “o Estado e o seu povo ficariam basicamente expostos aos efeitos da violação”, mas sem uma adequada e justa compensação.
“Seja quem for o beneficiário das garantias soberanas, ele nunca se pode colocar acima do interesse público e das regras que o protegem”, diz Vicente.
Contudo, os credores defendem-se dizendo que agiram de boa-fé, e que nessa base não eram obrigados a conhecer os procedimentos internos de autorização das garantias ou os limites de endividamento estipulados por lei.
Vicente diz que este argumento é inaceitável, tendo em conta que os credores “sabiam ou deviam saber” que cada garantia soberana excedia manifestamente os valores máximos estabelecidos por lei para cada ano em que elas tinham de ser executadas.
“Os limites sobre os montantes anuais das garantias soberanas moçambicanas são aprovados pelo parlamento, e publicados no Boletim da República, o qual é acessível a qualquer potencial beneficiário, e não meramente o sujeito de uma ordem interna dirigida aos membros da Administração Pública”, sendo por isso que não pode haver justificação por parte dos beneficiários das garantias de que estas pudessem ser reconhecidas como legalmente válidas.
Esta conclusão, defende, encontra respaldo no princípio geral coberto pelo artigo 6 do Código Civil, que determina que a ignorância ou má interpretação da lei não constitui motivo para se desculpar da sua inobservância, e que não isenta o indivíduo das sanções resultantes da sua violação.
Citando o artigo 269 do Código Civil, Vicente observa que qualquer contracto deixa de obrigar o Estado se a outra parte o tiver assinado com o conhecimento do uso abusivo dos poderes de representação pelo agente do Estado envolvido no negócio, isto porque, segundo explica, recai sobre a contraparte o ónus de se informar sobre os poderes de representação do agente com quem interage.
Vicente diz que em negócios com um Estado não pode haver confiança absoluta por parte de uma contraparte que se preze, “particularmente quando esta é uma entidade sofisticada, com o devido suporte jurídico-legal”. O entendimento é de que para quem se envolve em negócios do Estado, deve proceder todas as diligências necessárias para se certificar de que todas as suas acções estejam em conformidade com os procedimentos e as leis do país em causa, e não agir com base em presunções.
Vicente centra também os seus argumentos sobre o facto de as garantias não terem obtido visto do Tribunal Administrativo, afirmando que só por esse facto elas estão eivadas de vício, e como tal, sem qualquer validade legal.
“Como regra, e de acordo com a lei número 26/2009, o visto deve ser concedido pelo Tribunal Administrativo antes da execução de um contracto para o qual o Estado é parte, e não depois. Tendo em conta que o visto era obrigatório ao abrigo da legislação moçambicana, e de facto não foi concedido, essas garantias não podem legalmente ser pagas pelo governo”, diz.
Vicente aborda ainda a questão de se as dívidas ocultas poderiam ser consideradas legais, depois de o Parlamento as ter aprovado em Abril de 2017, como parte da Conta Geral do Estado de 2015. Sobre este caso, ele afirma que a sua aprovação a posteriori não as torna legais, precisamente pelo facto de elas terem sido ilegais quando as garantias foram emitidas.