A decisão tomada no dia 23 de Março, na cimeira da dupla troika da SADC em Lusaka, para a retirada da missão militar da organização em Moçambique (SAMIM), foi explicada oficialmente como resultado de dificuldades financeiras que os países contribuintes enfrentam.
Falando depois da cimeira, realizada em Lusaka, na Zâmbia, a ministra dos Negócios Estrangeiros e Cooperação de Moçambique, Verónica Macamo, disse que face às dificuldades que os países contribuintes enfrentam para financiar a presença das suas forças em Moçambique, eles decidiram que a melhor solução era a sua retirada. Acrescentou que, havendo necessidade de Moçambique tomar conta das suas próprias forças, teria “dificuldades em pagar pela SAMIM”.
Mas a questão das dificuldades financeiras parece ser apenas um pretexto para ocultar uma grave crise política e diplomática entre os países da SADC, por um lado, e o Ruanda, por outro, que também participa nas operações em Cabo Delgado, com um contingente de mais de 2000 homens.
Um dos países-membros da SADC, a República Democrática do Congo, (RDC) acusa o Ruanda de apoiar os rebeldes do M23, que têm protagonizado acções de desestabilização no Leste daquele país.
Em resposta à instabilidade no leste da RDC, a SADC decidiu enviar uma força militar constituída por contingentes da África do Sul, do Malawi e da Tanzânia, tendo para esse fim solicitado o apoio político, material e logístico às Nações Unidas e à União Africana.
O Ruanda insurgiu-se contra essa iniciativa, e numa carta enviada à presidente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, Carolyn Rodrigues-Birkett, no dia 12 de Fevereiro, advertia que o apoio à missão da SADC, também conhecida pela sigla SAMIDRC, contraria os princípios e objectivos da Carta das Nações Unidas.
A referida carta foi objecto de análise na cimeira do dia 23 de Março, tendo a SADC manifestado o seu desagrado em relação à mesma, reiterando que “o destacamento da SAMIDRC visa restaurar a paz e a segurança na RDC”.
Na carta assinada pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Vincent Biruta, o Ruanda adverte que se as Nações Unidas não reconsiderarem a decisão de apoiar a SAMIDRC, correm o risco de se tornarem parte da coligação de grupos armados que incluem o que considera de “forças negativas”.
No entender das autoridades ruandesas, o envolvimento da SAMIDRC, supostamente sob direcção das Forças Armadas da RDC, só pode contribuir para a escalada do conflito, e faz lembrar que o mandato da Missão de Estabilização das Nações Unidas na RDC (MONUSCO) requer que ela colabore com “iniciativas regionais de paz”, das quais a SAMIDRC “demonstrativamente não é”.
No lugar de prestar apoio à SAMIDRC, a carta do Ruanda sugere que as Nações Unidas “encorajem o Governo da RDC a procurar uma solução pacífica dentro dos processos de Nairobi e do Ruanda”, iniciativas de paz iniciadas pela Comunidade dos Estados da África Oriental.
“Embora o Governo do Ruanda não estaria naturalmente preocupado em as Nações Unidas disponibilizarem apoio às forças regionais, se elas se destinassem genuinamente a trazer a paz para o leste da RDC, gostaria de chamar atenção ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, de que a SAMIDRC não é força neutra na actual crise. A sua missão é apoiar a postura beligerante do Governo da RDC, com o potencial de uma escalada no conflito e aumento das tensões na região”, diz a carta.
Acusa ainda a SADC de ignorar os demais grupos armados no leste da RDC, que considera serem mais de 260, concentrando-se apenas no M23.
“Embora haja mais de 260 grupos armados no Leste da RDC, as forças da SADC (…) estão a apoiar selectivamente as forças armadas da RDC na luta contra os rebeldes do M23, juntamente com as Forças Armadas do Burundi (FDNB), mercenários europeus, forças genocidas do Ruanda (FDLR e suas facções) e um conjunto de grupos armados locais ideológica e etnicamente inspirados nos chamados Wazalendo”.
Acrescenta que alguns destes grupos foram criados pela FDLR, e que “têm prometido proceder a uma limpeza étnica no leste da RDC, de onde pretendem acabar com todos os membros da etnia Tutsi, a quem consideram serem ruandeses”.
Acusa os referidos grupos de estarem “envolvidos em cenas horríveis de matanças étnicas reminiscentes dos acontecimentos que precederam o genocídio de 1994 contra os tutsis no Ruanda. A SAMIDRC tem estado a realizar operações conjuntas com estes grupos negativos contra o M23, em apoio à determinação do Governo da RDC de seguir uma solução militar, em violação das recomendações do Processo de Nairobi, dirigido pela EAC (Comunidade da África Oriental), e a iniciativa de Luanda, dirigida por Angola”.
Ainda que manifestando a sua disponibilidade de continuar “a desempenhar o seu papel no apoio a uma resolução pacífica do conflito no leste da RDC”, a carta termina com o que pode ser interpretado como uma ameaça velada, ao declarar que Kigali também “continuará a tomar medidas preventivas e defensivas contra a declarada intenção dos presidentes da RDC e do Burundi de derrubar o Governo do Ruanda, e a ameaça que representam as forças genocidas que operam no leste da RDC”.
É no meio deste ambiente tóxico nas relações entre a SADC e o Ruanda, que Moçambique deve encontrar uma forma de acomodar os seus interesses estratégicos sem ferir as sensibilidades de qualquer das partes.
Como membro fundador da SADC, e com grande influência na organização, Moçambique não se pode achar imune aos impropérios atirados pelo Ruanda contra a organização. Se a decisão de criação da SAMIDRC foi da SADC, Moçambique é, por maioria de razão, parte dessa mesma decisão, e qualquer reacção da SADC a este respeito lhe é também vinculativa.
Este é o contexto em que deve ser interpretada a retirada da SAMIM de Moçambique, com todo o embaraço que cria ao país, que, por um lado, deve procurar salvaguardar o seu estatuto como membro fundador da SADC, assumindo como vinculativas todas as decisões da organização, enquanto, por outro, continua a forjar a sua aliança com o Ruanda para a luta contra o terrorismo em Cano Delgado.
Como com tudo isto Moçambique se posiciona no seio da SADC, e como os restantes membros da organização reagem perante estes desenvolvimentos continua uma incógnita que só o tempo deverá esclarecer.