A relação tensa entre o Governo do Presidente Filipe Nyusi e a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) tornou a Missão Militar (SAMIM) da organização que combate a insurgência na província de Cabo Delgado, norte de Moçambique, relativamente ineficaz e expôs os militares a riscos, considera o investigador Thomas Mandrup, da Universidade de Stalenbosh, da África do Sul.
“As relações tensas entre a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral [SADC] e o país acolhedor [da Missão Militar] tornou difícil à SAMIM ser plenamente eficaz e aumentou os riscos às unidades destacadas”, refere o estudo “África do Sul, SADC e SAMIM: Algumas lições aprendidas com a SADC em guerra”, consultado pelo SAVANA.
Mandrup assinala mesmo que o inesperado envio do contingente militar do Ruanda ao chamado Teatro Operacional Norte (TON), em Cabo Delgado, também complicou “o ambiente operacional para a SAMIM”.
O Ruanda, avança o estudo, parece ser o parceiro preferido pelo Governo de Filipe Nyusi.
Ainda assim, aquele investigador reconhece que a falta de recursos é uma condicionante para a duração do destacamento militar da África Austral em Moçambique, que já anunciou a sua retirada.
“O desdobramento da SADC em Moçambique jogou um papel contestado, mas crítico, tornando possível que as multinacionais petrolíferas reactivassem as suas actividades na província”, lê-se no texto.
Thomas Mandrup salienta que “a estória oficial” foi que a SAMIM tem sido relativamente bem-sucedida ao alcançar o resultado primário de reduzir a capacidade da insurgência islamita no norte de Cabo Delgado.
“Mas o quadro entre o pessoal no terreno relata uma estória com muitos nuances”, refere o estudo “África do Sul, SADC e SAMIM: Algumas lições aprendidas com a SADC em guerra”.
Ainda assim, a investigação reconhece que a decisão das multinacionais de retomarem as suas operações em Cabo Delgado é um sinal de que a situação de segurança melhorou significativamente naquela província e a confiança em relação ao futuro.
“A avaliação [contida na investigação] acontece quando as grandes companhias multinacionais do sector enérgetico recomeçaram a construção dos projectos de exploração de gás ´on shore` no norte de Moçambique, suspensos desde os ataques dramáticos e queda de Palma em 24 de Março de 2021”, avança o estudo.
Conflito complexo e com dimensões étnicas
Thomas Mandrup fez a sua investigação com depoimentos de especialistas, trabalhadores das agências humanitárias e de desenvolvimento, militares, académicos e políticos e membros dos serviços de informações, que falaram na condição de anonimato, tendo um deles notado o carácter muito complexo da guerra em Cabo Delgado.
“Qualquer um que reivindique o conhecimento da natureza do conflito em Cabo Delgado não compreende nada e explicações simples não podem ser usadas para compreender o que está a acontecer”, refere-se na avaliação.
“Não é uma guerra civil, porque é de longe muito organizada, e não é uma guerra islamita radical, como foi visto no Iraque e na Síria, dado que o ´modus operandi` e a brutalidade não se encaixam no que foi visto e usado pelas forças do Estado Islâmico”, afirmou uma fonte ouvida no estudo.
Algo muito sinistro se passa em Cabo Delgado, lê-se no estudo.
A pesquisa observa que a radicalização religiosa do sector islâmico em Cabo Delgado começou no início de 2000, no seio das etnias mwani e macua.
Nesse sentido, a dimensão étnica tem também peso na guerra em Cabo Delgado, dado que os mwanis e macuas sempre tiveram relações tensas com a minoria maconde.
Os macondes foram sempre vistos como privilegiados e conotados às elites de Maputo, realça o estudo.
O facto de um maconde ter-se tornado Presidente da República (Filipe Nyusi) agravou o sentido de marginalização que sempre imperou na mentalidade dos mwanis e macondes, agravando a animosidade étnica na região, acrescenta o estudo.
“Os grupos mwanis e macuas foram sempre marginalizados e foram a espinha dorsal do Ahlu Sunnah Wal Jamaah (ASWJ), que dirige a insurgência”, lê-se no estudo.
Uma fonte ouvida no estudo frisou que a liderança da ASWJ andou por muitas mesquitas na província de Cabo Delgado para conquistar os adultos locais e ter o seu apoio contra o Governo de Maputo.
“O que no início era um conflito local, assente na mobilização geral contra a frustração com o Governo central, a ferramenta religiosa tornou-se eficiente e instrumental como meio de recrutamento”, diz-se no documento.
O ASWJ mudou de estratégia, quando declarou a região de conflito em Cabo Delgado, num califado.
“O ASWJ acomodou crescentemente a população local, usando a abordagem de conquista de corações e mentes”, refere-se no estudo.
Aquela organização paga por alimentos, providenciando recursos financeiros às comunidades locais.
Por outro lado, como uma das razões da guerra em Cabo Delgado, as elites de Maputo têm fortes laços económicos, directos e competitivos na província, destaca a pesquisa.
“Em vários momentos, estes interesses competitivos e rivalidades entre fações de Maputo acabam financiando grupos armados na província”, disse uma outra fonte ouvida no estudo.
“Estas dimensões locais tornam difícil à SAMIM para cumprir o seu mandato”, assinala o texto.
Thomas Mandrup salienta que as Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) fugiram e abandonaram o equipamento bélico em muitos confrontos com os insurgentes.
O estudo frisa que a SADC concluiu em Abril de 2021 que Moçambique precisava de apoio militar no combate à insurgência em Cabo Delgado.
A SADC destacou um forte contingente militar, ao abrigo do cenário seis da Força em Alerta Africana.
O relatório recomendou que o contingente da SADC incluísse as forças aéreas, navais e terrestres, totalizando 2.900 elementos.
Mas em meados de 2021, a SADC destacou uma força militar robusta de apenas 1.900 soldados.
O número de helicópteros de ataque, transporte aéreo e serviços de informação que a SAMIM requeria não foi alcançado, diz aquele investigador de Stalenbosch.
“O destacamento da SAMIM aconteceu num contexto de controvérsia política entre o Governo acolhedor e a SADC”, frisa o documento.
O Governo de Filipe Nyusi bloqueou o envio rápido da força regional num cenário de deterioração da situação em Cabo Delgado e de pressão regional para a aceitação de militares da África Austral, observa o estudo
Em paralelo, o Governo de Moçambique assinou um acordo com o Ruanda para o envio de tropas deste país a Cabo Delgado, com França a facilitar indirectamente uma missão militar ruandesa de 2.800 soldados.
A SAMIM tinha quatro objectivos estratégicos: neutralizar os grupos de insurgentes, apoiar as FADM, dar treino e assessoria às FADM.
Os ataques de ASWJ às populações locais e às forças de segurança continuam a acontecer com frequência e a redução de incursões dos insurgentes não pode ser vista erradamente como falta de capacidade, porque o ASWJ está à espera que a SAMIM e, possivelmente, o Ruanda deixem Moçambique.
É improvável que as FADM assumam o controlo das zonas ocupadas pela SAMIM e pelo Ruanda, mesmo tendo recebido treino da União Europeia e dos EUA, no combate ao terrorismo, frisa o estudo.
O estudo refere que a SAMIM não foi capaz de providenciar treino aos militares moçambicanos, porque o Governo foi incapaz de identificar as necessidades de formação das forças de segurança local.
Thomas Mandrup salienta que a SADC tem militares na RD Congo, financiados por este país, o que também pode ajudar a explicar a necessidade de abandonar Moçambique.