Maria (nome fictício), de 34 anos de idade, viveu sete anos de casamento marcados por agressões físicas e psicológicas. Nunca denunciou. Tinha medo de perder o sustento e pena dos filhos e, até certo ponto, acreditava que o agressor fosse mudar. Separada do marido há dois, e acolhida pela sua irmã mais velha, vive com seus filhos. Já Edson Machado, cobrador de transporte semi-colectivo de passageiros de 32 anos, relata que foi até à polícia para denunciar o caso, mas chegado à esquadra, os agentes riram-se dele. “Como é que você aceita levar pancada de uma mulher? Isso você devia resolver na sua casa”. Conta ainda que se arrepende de ter ido à esquadra denunciar devido ao tipo de atendimento que recebeu. Diferente da Maria, Machado revela que, após o ocorrido, conseguiu resolver a situação com a parceira e que hoje vivem maritalmente juntos.
Os dois casos reflectem a realidade de muitos moçambicanos vítimas de violência doméstica que, por diferentes razões, permanecem presos ao silêncio por medo, vergonha e falta de confiança nas instituições.
Segundo dados do Departamento de Atendimento à Família e Menores Vítimas de Violência (DAFMVV) da Polícia da República de Moçambique (PRM), nos primeiros nove meses de 2025, foram registados 1 531 casos de violência doméstica, contra 1 551 no mesmo período de 2024, o que representa uma pequena redução de 20 casos.
Apesar da ligeira diminuição, os números continuam elevados e revelam uma realidade preocupante.
Subnotificação: o desafio invisível da violência doméstica
De acordo com a chefe de Repartição de Estatística e Difusão do DAFMVV na cidade de Maputo, Amélia Mabjaia, do total registado nos primeiros nove meses de 2025, 1 109 sobreviventes são mulheres, 422 são homens e 563 são crianças. As mulheres continuam a representar a maioria dos casos, sobretudo de violência física, enquanto entre os homens predominam as agressões psicológicas. Mas, de acordo com especialistas, esses números estão longe de reflectir a realidade. A subnotificação continua a ser um dos principais desafios na luta contra a violência doméstica.
Instituições que desmotivam e revitalizam as vítimas
O Observatório das Mulheres e a Associação Sociocultural Horizonte Azul afirmam que a maior parte das vítimas não chega sequer a formalizar queixa, seja por medo, vergonha ou desconfiança no sistema de justiça. O resultado é um vazio estatístico que distorce a real dimensão do problema e compromete a criação de políticas eficazes.
A oficial legal do Observatório das Mulheres, Rosita Eurídice, explica que a subnotificação está intimamente ligada ao modo como as instituições tratam as vítimas.
“As mulheres, sempre que têm uma situação de violência, por vezes elas vão às esquadras ou aos gabinetes de Atendimento a Famílias e Menores de violência para fazer a sua denúncia. Mas têm-se deparado com situações, por vezes, de questionamentos. Por que é que tu estás aqui? Por que seu marido te deu apenas uma chapada? Achas que não podes perdoá-lo por isso, vais querer perder o seu lar, simplesmente porque ele te deu uma chapada? Sabes que ele é o único provedor?”, relata Eurídice. “Essas frases desmotivam. A mulher, às vezes, acaba voltando para casa, desiste desta denúncia, mas esta violência não pára, porque muitas vezes estes episódios são cíclicos. Começa com uma chapada, um insulto, um soco, até o estágio mais avançado da violência, que é o feminicídio”.
Ela aponta ainda a falta de confiança nas instituições de justiça e a morosidade dos processos como factores determinantes. “Há casos que demoram até um ano. A vítima perde a esperança, e é obrigada, muitas das vezes, a conviver com este agressor. Depois de uma situação de violência, ela tem que voltar para casa e aturar este agressor que, muitas vezes, faz chacotas por ela ter denunciado e nunca ter lhe acontecido nada ou nada ter acontecido a ele até o momento. Então, isto faz com que as mulheres, às vezes, desistam de denunciar”, explica a oficial legal do Observatório das Mulheres.
Impunidade e corrupção travam o acesso à justiça
Além disso, há negociações informais que travam o andamento de muitos processos, “há situações em que o agressor paga para o processo desaparecer. Mesmo sendo um crime público, muitos casos morrem ali mesmo”, alertou Eurídice.
Falta de dados distorce a realidade
Para a oficial legal, o problema da subnotificação também compromete as estatísticas e políticas públicas, “há uma contradição naquilo que são os dados sobre a violência. No ano passado, lançamos o barómetro sobre o estado das mulheres, e quando fizemos a colecta de dados, percebemos que, por exemplo, a PGR tinha seus dados, a PRM tinha lá os seus dados, e nós também, como sociedade civil, temos os nossos dados”, explicou Eurídice e acrescenta, “sem dados harmonizados, é difícil criar políticas eficazes. Falta comunicação entre as instituições”.
Sistema fraco e inoperante desmotiva denúncias
Para a gestora de formação humana na Associação Sócio Cultural Horizonte Azul (ASCHA), Berta de Nazareth, a subnotificação tem “razão de ser”, ainda que injustificável porque o sistema não garante atendimento humanizado nem seguimento dos casos.
“Os poucos casos que chegam à polícia, ao hospital, mostram ausência de mecanismos eficazes. Ele existe como projecto, criação, identificação, por aí fora, mas, na prática, o processo é fraco e inoperante”, disse Nazareth.
Segundo a gestora de formação humana da ASCHA, muitas vítimas sentem-se apenas expostas, sem retorno.
“As pessoas colocam a denúncia e depois não têm feedback. Isso desmotiva. Cria um clima de impunidade, e as vítimas desistem. Quem tem coragem de ir à polícia volta frustrada”, explicou Nazareth.
Casos parados e vítimas desamparadas
A gestora da ASCHA partilha um exemplo recente. “Acompanhamos o caso de uma mulher que fracturou a bacia após ser espancada pelo marido. Tentámos apoiar no seguimento do processo, mas até hoje não avançou, porque os serviços não foram atrás da vítima, e ela está imobilizada. Como pode uma mulher nessas condições ir à esquadra?”, questiona.
O resultado, diz ela, é preocupante. “A vítima continua a viver com o agressor. Está obrigada, pela situação, a conviver com ele. Isso é o retrato do fracasso do sistema”, lamenta. Para a gestora, essa falta de acção institucional cria um ciclo de descrença e normalização da violência. “As pessoas já não acreditam na justiça. Quem tenta, frustra-se. E quem ouve essas histórias prefere calar. Assim, o problema torna-se crónico e endémico”, disse Nazareth.
A gestora de formação humana da ASCHA acrescenta que até os casos mais graves acabam sendo adiados indefinidamente, como o de Paula, jovem violada e assassinada cujo julgamento foi sucessivamente adiado. “Esse vazio de respostas destrói o senso de justiça e de dignidade humana. As pessoas começam a acreditar que estão por si só. E isso é perigoso”, alertou Nazareth.
Medo, vergonha e descrença: as raízes do silêncio
Por sua vez, a directora executiva do Fórum Mulher, Nzira Razão de Deus, afirma que a subnotificação é consequência directa da falta de informação, medo e descrença nas instituições.
“Muitas pessoas ainda não sabem que a violência é um crime público. Há muita mulher que não sabe que pode viver uma vida livre de violência. Outras têm vergonha e medo. Por que a vergonha e o medo? Porque uma vítima, primeiro, sente que lhe foi retirada aquela parte da sua dignidade e foi colocada numa situação de vulnerabilidade. Sentem-se culpadas, ameaçadas ou temem represálias contra elas e os filhos”, explicou, acrescentando que, “mesmo quando denunciam, o agressor está livre no dia seguinte, está a circular. Não acontece nada, não há nenhum tipo de punição. Essa impunidade mina a confiança no sector da justiça e faz com que outras desistam de denunciar.”
Ela acrescenta que a ausência de dados fiáveis tem impacto directo nas políticas públicas. “Só podemos ter uma análise real da situação, se temos dados, se sabemos efectivamente o que está a acontecer, onde está a acontecer, o tipo de violência que está sendo praticada, quem está praticando, o perfil dos agressores. Para que nós possamos, de facto, atacar o problema. Também, se nós não temos esta informação, não temos os casos notificados, quer dizer que estamos sem informação para poder agir devidamente. Portanto, é de facto muito importante que as pessoas denunciem a violência”, explicou.
Masculinidades e silêncio dos homens
A Rede Hopem, organização que trabalha com homens e rapazes na promoção da igualdade de género e combate à violência, avalia a situação como “profundamente preocupante”, sobretudo em virtude da ausência de denúncias, tanto de homens quanto de mulheres.
“É verdade que poucos homens denunciam casos de violência doméstica, isso provavelmente não quer dizer que os homens não sofram violência doméstica. E o que estaria por detrás dessa não denúncia, provavelmente, achamos nós, que isso deve-se ao facto de estar muito ligado à questão das masculinidades, à forma como os homens, os indivíduos do sexo masculino, são socializados para serem homens. Pelo menos é assim como as masculinidades tradicionais, no seu lado negativo, moldam os homens. As normas sociais e culturais que moldam o que é ‘ser homem’ acabam por silenciar as vítimas”, explicou o gestor de advocacia da Rede Hopem, Bayano Valy.
Segundo ele, essas barreiras não se limitam à sociedade, mas também se reflectem nas próprias instituições, “há evidências no detalhe em como, por exemplo, os gabinetes de atendimento até enxotam os homens que vão lá à procura de ajuda, que vão lá para denunciar. Quer dizer, essas barreiras é que fazem com que os homens não procurem esses serviços para denúncia. Se quem deve acolher ridiculariza, o silêncio torna-se a única saída”, revelou o representante da Rede Hopem.
Falta de confiança nas instituições afasta as vítimas
Nas ruas da cidade de Maputo, as opiniões são unânimes, denunciar a violência doméstica é importante, mas a falta de confiança nas instituições e o medo de não serem levados a sério continuam a silenciar muitas vítimas (homens e mulheres).
Cristina Américo, de 31 anos, diz que “denunciaria porque é crime, mas infelizmente já ouvi histórias de mulheres que vão lá, denunciam, e a própria polícia orienta que a mulher volte para casa e resolva as suas diferenças com o homem. Então, muitas vezes elas acabam mesmo perdendo forças em denunciar”, explicou.
Por sua vez, Luís Santos, de 25 anos, vendedor âmbulante, diz que não denunciaria por falta de confiança nas instituições de protecção. “É normal você denunciar uma pessoa, e se a pessoa tem “costas quentes”, por exemplo, tem dinheiro, nem vai para a esquadra, não vai preso. Então, não tem como perder tempo, ir para a esquadra, e denunciar a pessoa”, desabafa.
João (nome fictício) de 53 anos, diz que os homens não denunciam casos de violência doméstica por “vergonha. E também as instituições, quando eu saio, vou à esquadra, quero meter a queixa, os próprios polícias não estão preparados para resolver casos desta natureza. Porque eles podem dizer, você é homem, um gajo robusto, um gajo forte, vem queixar por uma mulher. Eles começam a rir, eles ignoram o teu processo”, lamenta. Mas, apesar disso, afirma categoricamente: “eu posso denunciar, sim, porque se não queixo, fico com as coisas no coração, pode me criar problemas”, concluiu.
Caminho para uma justiça mais célere e especializada
Sobre a questão da morosidade processual levantada pelas organizações não-governamentais durante suas intervenções, Amélia Mabjaia explica que a situação deve-se à falta de secções específicas nos tribunais para lidar com casos de violência doméstica. “Antigamente você ficava um ano, mas isso já foi limado. Agora, se nós falamos de amorosidade, estamos a falar no máximo dos máximos de três meses, porém ainda não se efectivou”,explicou. Segundo revelou,está em curso a criação de secções específicas nos tribunais para tratar exclusivamente casos de violência doméstica. “Espera-se que, com essa especialização, os processos passem a ser resolvidos no prazo máximo de 72 horas, conforme previsto na Lei, mas ainda não há divisão. Não temos secções específicas para isso, explicou Mabjaia. (Helena Madança)
 
                     
				             
            